Entrevista baseada em informações fornecidas por John Sperry à revista A Bíblia no Brasil .
Como traduzir o nome de Deus para uma língua na qual não existe a palavra “Deus”? Este é apenas um dos muitos desafios que John Sperry, bispo anglicano e presidente da Sociedade Bíblica do Canadá, vem encontrando em seu ministério de mais de 40 anos entre os esquimós e os índios, na região do Ártico canadense.
Nascido na Inglaterra, o bispo Sperry iniciou a atividade pastoral no Ártico logo depois de sua ordenação ao ministério, acontecida no Canadá. Desde então, ele tem se dedicado a levar a Palavra de Deus aos esquimós, aprendendo a sua língua e conhecendo a sua cultura.
Há cerca de 20 anos, ele começou também a traduzir a Bíblia para várias das línguas faladas na região. Hoje, Sperry está trabalhando na tradução das Escrituras para um dialeto da língua esquimó, falado na região central.
Recentemente, ele esteve no Brasil e participou de uma das viagens do barco “Luz na Amazônia II” no Pará. Sperry afirma que aprendeu muito com essa experiência. “Fiquei impressionado com o ministério de cura tanto de almas como de corpos, que está sendo desenvolvido pela SBB na Amazônia.”
Na entrevista que publicamos a seguir, John Sperry fala sobre a história e as curiosidades do seu trabalho de tradução das Escrituras e conta como os povos do Ártico canadense recebem a Palavra de Deus.
Pergunta: O senhor poderia contar a história da tradução da Bíblia no Ártico canadense?
Resposta: Antes de tudo, é preciso dizer que, nessa região, vivem dois povos diferentes: os índios e os esquimós — ou “inuits”, como são chamados na região. A palavra “esquimó” quer dizer “pessoa que come peixe cru” e, para os inuits, tem um sentido pejorativo. Os índios vivem nas terras que vão até os limites dos territórios onde existem árvores. Os esquimós, por sua vez, ocupam as terras inférteis que ficam acima desses limites, em direção ao norte.
Pergunta: Como foi iniciado o trabalho de tradução das Escrituras na região?
Resposta: Os primeiros exploradores dessas terras vinham do Quebec; eram canadenses de origem francesa. Depois, vieram também exploradores de origens inglesa e escocesa. Todos eles estavam interessados no comércio das peles dos animais que vivem ali. Mais tarde, chegaram os missionários das igrejas — Anglicana e Católica Romana -, os quais trabalharam muito nessa região. Desde essa época, as Escrituras vêm sendo traduzidas no Ártico canadense.
Pergunta: Quais foram as principais dificuldades encontradas no trabalho realizado para os índios?
Resposta: A grande dificuldade foi a alfabetização, já que as tribos indígenas do Canadá não conheciam a escrita. Uma das etapas mais importantes do trabalho de tradução da Bíblia para eles foi a criação de um sistema de notação (conjunto de sinais) de suas línguas. Durante a metade do século XIX, James Evans, um missionário metodista, adaptou o pitnan (uma espécie de sistema estenográfico) com o objetivo de transcrever foneticamente a língua dos índios e permitir que eles aprendessem a ler mais facilmente. Os índios aprenderam o pitnan com uma rapidez extraordinária. A partir daí, o uso desse sistema não demorou a se propagar entre os povos indígenas. Ainda hoje há alguns povos que utilizam o pitnan; eles chamam esse sistema de “a casca de bétula que fala”.
Pergunta: Em que fase se encontra hoje a tradução das Escrituras para os índios canadenses?
Resposta: Apesar de existirem numerosas tribos na região, todas elas dispõem atualmente de pelo menos uma tradução do Novo Testamento — e, algumas, também do Antigo Testamento. Existem 25 línguas indígenas nessa região. Mas, hoje, muitas delas já não são faladas pelos índios, a não ser pelos mais idosos.
Pergunta: Os índios canadenses se identificam com as histórias contadas na Bíblia?
Resposta: Sim, os mais idosos em particular. Eles conhecem as histórias contadas nas Escrituras e falam a respeito deles mesmos utilizando termos cheios de sentido bíblico. É o caso da história da libertação do povo de Deus no Egito. Os índios gostam muito dessa passagem por causa do significado político que ela tem, o qual se aproxima da própria situação deles.
Pergunta: O que os índios acham familiar ao modo de vida deles no texto bíblico?
Resposta: Tudo aquilo que se refere à caça. E que eles são caçadores, e isso lhes fala diretamente. No caso da tribo dos “crees”, eles gostam particularmente da história do vale dos ossos secos, que representa a vida, escrita no capítulo 37 do Livro do profeta Ezequiel. Os “crees” têm uma afinidade cultural muito próxima com o corpo humano. Nessa tribo, quando duas pessoas têm o mesmo nome, são chamadas de “osso companheiro”. Outras histórias, como a Parábola do Filho Pródigo ou da barca de Noé, também os tocam muito. E, é claro, a vida de Jesus.
Pergunta: E quanto aos esquimós – qual é a sua população no Ártico, hoje?
Resposta: Em todo o Ártico, há cerca de 22 mil esquimós. Graças ao notável apoio do governo canadense e à conseqüente melhora do nível de vida na região, essa população vem aumentando.
Pergunta: Quantos deles são cristãos?
Resposta: Todos, ou quase todos, têm um relacionamento mais ou menos estreito com a igreja. Mas a tendência a respeito desse relacionamento é baixar. Os esquimós são menos ligados aos valores espirituais de seus avós do que os índios canadenses. Mas ainda existem muitos crentes ativos, e as igrejas estão cheias. Digamos simplesmente que, para os jovens esquimós de hoje, o cristianismo não é mais “a religião do povo”, como era há 40 anos.
Pergunta: Como é a religião tradicional dos esquimós?
Resposta: Os esquimós são animistas; eles crêem no espírito do mundo e não têm nenhuma palavra para designar Deus. É que os caçadores esquimós tiravam dos animais tudo o que lhes era necessário para viver — a comida, a luz, o calor (eles se aquecem com o óleo de foca), as roupas. Então, eles acreditavam que a ordem do mundo era regida pelos animais.
Pergunta: Como se resolveu, na tradução da Bíblia, esse problema de não existir um nome para Deus?
Resposta: Essa é uma questão muito interessante. A primeira sugestão para solucionar esse problema foi dada por um missionário no Alaska. Ele perguntou aos esquimós do local onde trabalhava qual era a coisa mais importante para o povoado deles. Os esquimós responderam que era uma embarcação “umyalik”, um tipo de barco maior que o “caiaque”. Então, esse missionário utilizou a palavra “Embarcação” para designar Deus. O começo da oração do Pai-nosso, por exemplo, ficou assim: “Nosso Proprietário do Grande Barco que estás nos céus…”. Mais tarde, outros tradutores protestantes acharam que essa palavra não era apropriada e criaram a palavra “Goody”, para Deus. Os tradutores católicos usam a palavra “Munalyokt”, que quer dizer “O Criador da Terra”.
Pergunta: Que outras palavras ou expressões tiveram de ser inventadas para a tradução em esquimó?
Resposta: Os esquimós desconhecem completamente tudo aquilo que diz respeito à agricultura. Do mesmo modo, não conhecem nada do que se relaciona à natureza das terras bíblicas. Então, é preciso achar palavras e expressões para traduzir o que está ligado a esses assuntos. Por exemplo: um jumento é “um grande cachorro de orelhas compridas”, e a serpente, “uma corda que vive e se mexe rapidamente”.
Pergunta: Como a Bíblia é recebida hoje por essas comunidades?
Resposta: No espírito desses cristãos, não existe dúvida alguma de que a Bíblia é a Palavra de Deus revelada aos seres humanos. Eu diria que eles não vêem a Bíblia de uma maneira sofisticada, mas a recebem como Palavra de Deus, porque eles são provenientes de um ambiente de milagres e mágicas. Os chefes espirituais de seus antepassados podiam fazer coisas espantosas; por isso, nada do que está escrito nas Escrituras os surpreende. Mas acredito que, à sua maneira, os esquimós podem provar a existência de Deus. Muitos deles têm a experiência que Deus cumpre as promessas que faz na Bíblia e que, quando as coisas vão mal, existe uma fonte de esperança.
Glórias a Deus nas alturas!
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